Língua Portugesa com Luciane Sartori: Você falou o "quê"?


Você falou o "quê"?
Por Luciane Sartori

            Em toda língua, há palavras que são mágicas! E cada uma delas tem magia própria e por motivos diferentes. Em Português, a palavra "borbulhar", por exemplo, é interessantíssima!, pois, ao pronunciá-la, nossa boca parece fazer as bolhas, e, além do movimento da boca, o  som dessa palavra também imita o som do borbulhar propriamente dito, vocês já notaram? "Cadáver" por sua vez intriga pela sua formação por composição: "carne dada aos vermes". Já "recrudescimento" nos engana, pois parece significar "diminuição", no entanto significa "aumento, agravamento". Outras, ainda, são criadas por analogia ou metáfora, como é o caso de "engatinhar", que significa andar de gatinhas; sua relação com gato é, no mínimo, criativa. E há aquelas que, por intuição linguística, são tão bem concebidas e internalizadas que as pessoas usam em exagero e ultrapassam o limite do bom senso linguístico tamanho é o apego com a palavra ou a praticidade que ela nos concede , como ocorre com a palavra "que".

            Sem dúvida, esta palavrinha causa efeitos mágicos, o que é extremamente compreensível, já que é uma palavra base de conexão em nossa língua. Basta repararmos nas locuções de conjunção "já que", "desde que",  "contanto que", " para que", "logo que", "ainda que", "mesmo que"... E como se não bastasse fazer parte dessas várias conexões circunstanciais, ou seja, de conexões de orações adverbiais,  pode também ser conjunção coordenativa, conjunção subordinativa integrante e pronome relativo, ou seja, conectivo de oração coordenada, de oração subordinada substantiva e de oração subordinada adjetiva respectivamente. 
            Em concurso público, as conexões dão trabalho, é um dos assuntos  mais solicitados, eu diria, mais exigidos, haja vista sua importância na estrutura da frase, do texto devido às relações de sentido estabelecidas por elas. Por isso seu emprego exige muito raciocínio sintático-semântico, obrigando as pessoas a perceberem sua existência na elaboração textual. E digo isso, porque é difícil alguém ler, dando importância ao emprego das conexões no texto, porém, quando elas não aparecem, a leitura fica bem mais difícil, já que nenhuma delas  está lá para "passar a cola" da relação estipulada entre as frases pelo autor e o leitor, então, normalmente, encontra dificuldade em compreender ou não consegue compreender qual foi a relação de sentido que o autor criou no contexto.
             O "que" mais trabalhoso de todos é o relativo, conexão básica das orações adjetivas, que é irmão gêmeo da conjunção subordinativa integrante, vulgo c.s.i., o que causa muita confusão para todo mundo; mas, como todo irmão gêmeo, sempre há o que os distingue, afinal não são os mesmos seres, senão seriam só um. E como se não bastasse essa confusão, essa aparência tão semelhante, há ainda a regência que complica ainda mais  o raciocínio: "vai ou não vai" preposição antes deste quê? E preposições são palavras a que devemos sempre estar submetidos!  Meu Deus de onde veio essa preposição a em "a que devemos sempre estar submetidos"?! Por que empregá-la?
            É por esses motivos que as bancas tanto cobram a regência e o relativo bem como a regência e a conjunção integrante. Então, vamos começar por diferenciá-los: a conjunção introduz uma Oração Subordinada Substantiva, enquanto o pronome introduz a Oração Subordinada Adjetiva. Observem que a Adjetiva é a única oração que se inicia com pronome, pois ela tem valor de adjetivo - que só se refere a substantivo, a nome - , assim como faz o pronome, que só se refere a nome. A Substantiva funciona como um substantivo, como diz sua classificação, e assim pode relacionar-se a outro substantivo, a adjetivo, a verbo, enfim, o substantivo já é mais eclético; mas de qualquer maneira, esta oração atua de forma diferente daquela, pois a substantiva completa sintaticamente a oração principal, enquanto a adjetiva caracteriza um nome da oração principal.
            Por essa razão, utilizamos alguns truquezinhos para facilitar a vida de todos, a saber: o relativo "que" equivale a "o qual, a qual, os quais, as quais", e isso já ajuda muito; a oração substantiva equivale a "isso", o que também ajuda muito. É bom lembrar ainda do falei no artigo anterior: o relativo tem significado - e agora acrescento: a  c.s.i. não. Vejamos:

Serão colhidas as laranjas, que são frutas cítricas
.  --->   vejam que o relativo equivale a "as quais";

Nós soubemos que eles participarão da reunião
.  ----> vejam que a oração sublinhada equivale a "isso".
            Com essas trocas, as frases acima poderiam ser reescritas assim:

Serão colhidas as laranjas, as quais são frutas cítricas. --->
   a oração sublinhada é um  adjetivo de
                                                                                                              "laranjas";

Nós soubemos isso. ----> 
o oração sublinhada completa o verbo "saber" da oração principal é um
                                               objeto direto oracional.

            Através dessas substituições, analisamos com mais facilidade os períodos acima e entendemos duas coisas importantes: no primeiro, o relativo significa "as laranjas" - "as laranjas são frutas cítricas" - e a oração em que ele foi empregado é uma oração subordinada adjetiva; no segundo, a c.s.i. não tem significado - apenas  serve de integração entre uma oração e outra - e a oração é subordinada substantiva.
            No artigo anterior, vimos como analisamos a oração em que o relativo foi inserido para verificarmos se há preposição antes deste pronome ou não. Agora, vamos ver como fazemos com a conjunção integrante:
            Sou favorável / a que você estude à noite. Em primeiro lugar, distinga o "que" trocando a segunda oração por "isso", sem anular a presença da preposição: Sou favorável a isso. Feita a substituição, será fácil perceber que se trata de uma conjunção integrante, logo está numa oração substantiva que completa a oração principal, sendo assim a preposição vem de uma palavra da oração principal. Diferente do que ocorre com o relativo, porque a preposição só aparecerá antes dele, se na oração adjetiva for necessário empregá-la. Não se esqueçam disso! Vejam:
            Este é o mecanismo/ de que preciso/ para resolver bem questões de regência.      =
            Este é o mecanismo/ do qual preciso/ para resolver bem questões de regência.
            A preposição só apareceu neste contexto, porque, na oração adjetiva, o verbo "precisar" exigiu, lembraram-se?
            "E na hora de redigir, o "que" nos deve preocupar?" Sim, pois a praticidade e a versatilidade no emprego dessa palavra nos levam a repeti-la demais em textos espontâneos, redações e textos informais, ultrapassando o bom senso linguístico, como mencionei no início do texto. Essa repetição é chamada de “queísmo” e pode ser evitada com a redução das orações, cujos verbos aparecem em suas formas nominais (infinitivo, gerúndio e particípio) e os conectivos desaparecem, por exemplo:
a) com o relativo:  Esta cidade, que foi fundada em 1878, é bastante conservada. 
=
                              Esta cidade, fundada em 1878, é bastante conservada.

b) com conjunção subordinativa integrante:    É possível que eles venham à recepção.
=
                                                                           É possível virem à recepção.

            No caso do pronome relativo, ainda, é possível fazer  sua substituição pelo pronome relativo “o qual(s)/a qual(s)” nas orações subordinadas adjetivas explicativas (orações separadas por vírgula). Por exemplo, se dissermos que “O carro, que caiu, era de cor azul.” ou “O carro, o qual caiu, era de cor azul.”, teremos o mesmo sentido nas duas orações adjetivas, com a vantagem de poupar o uso do que sem desgastá-lo.
            É importante ressaltar que o uso exagerado dessa palavra pode ser tomado como um erro, mas também é importante ressaltar que ela não deve ser suprimida radicalmente de seus textos, pois é a eficiência desse termo que o faz ser tão explorado; por isso, ele deve mesmo é ser bem usado.
            Certo, pessoal?! Semana que vem, continuaremos a falar sobre conexões.
            Um abraço e até lá.

LUCIANE SARTORI
Graduada em Letras e Pós-Graduada em Metodologia de Ensino para Terceiro Grau. Professora Especialista em Português – gramática, interpretação de textos, redação discursiva e redação oficial. Revisora e redatora de textos há vinte e cinco anos, tendo vinte anos de experiência na área de concursos. Atualmente, leciona na Rede LFG, no Curso para Concurso, em Simulados na Web, no Curso Marcato, no Sartori Virtual, no JC Concursos e no Curso Praetorium.
Autora participante do livro Vade Mecum para Concursos Públicos: nível médio e superior sem formação em direito. Luciane Sartori, Nélson Sartori e vários outros autores. / coordenação, Álvaro de Azevedo e Júlia Meyer Fernandes Tavares.- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
Professora Luciane Sartori:  
 www.sartoriprofessores.com.br   /   www.sartorivirtual.com.br


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